Conecte-se

#GUATEMALA

Guatemala: repressão a protestos contra governo e procuradora-geral agrava crise

GIRO LATINO

Ainda com impasse na transição de poder após vitória da esquerda, governo de Alejandro Giammattei e chefe do Ministério Público entram em rota de colisão contra protestos sociais que denunciam 'golpe em curso'

14 de out. de 236 min de leitura
14 de out. de 236 min de leitura

Em qualquer canto da Guatemala, a sensação é a mesma: a vitória incontestável da chapa progressista de Bernardo Arévalo e Karin Herrera no segundo turno das eleições, realizado em 20/8, pode até ter definido quem governará o país pelos próximos quatro anos a partir de 2024, mas nem de longe encerrou o clima beligerante no país. Mesmo antes de caminhar rumo ao turno derradeiro, o Ministério Público vem topando com o binômio de centro-esquerda, pedindo a suspensão do partido Semilla e quase deixando Arévalo fora do mesmo segundo turno que ele eventualmente ganharia. Na segunda-feira (9), mais lenha na fogueira: em sua reação mais enérgica desde o triunfo definitivo da esquerda, a procuradora-geral Consuelo Porras pediu ao governo mão dura contra protestos populares – os mesmos que, não por acaso, pedem justamente a saída de Porras. 

O pedido da chefa do MP derramou gasolina no fogaréu social do país, sobretudo pelo respaldo imediato do governo do presidente Alejandro Giammattei, conhecido aliado de Porras e que há anos flerta com uma agenda autoritária. Prometendo prender quem estiver à frente das marchas e acusando organizações civis e movimentos indígenas de receberem verba estrangeira para financiar a logística dos paros – distribuídos em dezenas de bloqueios de estrada há exatos 12 dias neste sábado – Giammattei repetiu as palavras da procuradora-geral, chamando de “vândalos” e “violadores de direitos” os manifestantes que seguem denunciando um “golpe de Estado em curso” contra Arévalo e sua vice.  

A repressão às paralisações desceu quadrada entre representantes de entidades internacionais, que há anos alertam para os riscos à democracia guatemalteca protagonizados pelo órgão comandado por Consuelo Porras. Na terça-feira (10), até o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, saiu em defesa das jornadas populares e reiterou uma posição crítica ao trabalho do MP: Almagro classificou as pressões judiciais contra Bernardo Arévalo e o Semilla de “exemplo vergonhoso para o hemisfério” e “medidas que parecem concebidas para anular a vontade do eleitorado”. Segundo o chefe da OEA, as passeatas são majoritariamente tranquilas e eventuais episódios violentos seriam nada mais do que eventos isolados gerados por grupos que buscam “desestabilizar” mobilizações legítimas. 

Quem andou pelo mesmo caminho foi a União Europeia, que, por meio de seu embaixador na Guatemala, Thomas Peyker, rejeitou hipóteses de fraude eleitoral levantadas por organismos internos e pediu diálogo – mas sem descartar a hipótese de impor sanções mais pesadas “a pessoas” que “estão por trás ou agem para minar o processo eleitoral ou o sistema democrático”, sem citar nominalmente os membros MP (muitos dos quais, incluindo a própria Porras, já vêm sendo sancionados fora do país há algum tempo).  

Os próximos dias na Cidade da Guatemala, coração dos protestos, podem ser cruciais para o futuro político do país, ao menos no curto prazo. Isso passa por Giammattei: outrora muito próximo à infame procuradora-geral, o mandatário, talvez temendo enfrentar as mesmas pressões de sua aliada (tanto nas ruas quanto fora do país), deixou claro que não tem “qualquer intenção de se manter no poder”. Ele até já se encontrou com o próprio Luis Almagro, prometendo cooperar com o processo de transição – etapa que, no entanto, acabou suspensa temporariamente em setembro por decisão de Arévalo, após membros do Ministério Público realizarem uma “batida” na sede do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) para revirar urnas de votação, tudo sob justificativa de investigar eventuais irregularidades (ainda não comprovadas). 

Durante a semana, numa tentativa de botar um ponto final nas tensões, Giammattei enviou uma carta a seu sucessor, fazendo votos por diálogos que resolvam a atual crise política. Mas, se o presidente sainte buscava trégua, não foi o que encontrou: rodeado de apoiadores na noite de quarta-feira (11), Arévalo foi até o Palácio Nacional para entregar sua resposta, lida em voz alta nas ruas: “Consuelo Porras, a procuradora-geral que você [Giammattei] reelegeu, tem empreendido ações para zombar do povo da Guatemala, quebrar a integridade do processo eleitoral e negar os resultados das eleições”. O presidente eleito ainda destacou que o atual mandatário “permaneceu calado” diante das tentativas de apatifar as eleições e, portanto, seria conivente com as ações intimidatórias do MP. 

O atual mandato da procuradora-geral, renovado no ano passado, vai até o início de 2026 – o que coincide com os primeiros dois anos de Arévalo à frente do cargo. O problema para a chapa esquerdista, porém, é que as leis guatemaltecas só preveem dois cenários possíveis para a destituição de Porras: uma condenação no exercício de suas funções, hipótese que jogaria no colo do presidente o poder de demiti-la; ou que ela mesma peça para sair.

Presidente guatemalteco Alejandro Giammattei e procuradora-geral Consuelo Porras durante a entrega do relatório anual do MP, em 17 de maio. Foto: Presidência da Guatemala
Presidente guatemalteco Alejandro Giammattei e procuradora-geral Consuelo Porras durante a entrega do relatório anual do MP, em 17 de maio. Foto: Presidência da Guatemala

Na prática, mesmo que Giammattei ouça os apelos multitudinários para rogar à fiel colega sua renúncia, ela pode simplesmente rejeitar a sugestão e seguir no cargo até o fim do ciclo, garantindo uma constante rota de colisão com o futuro governo. E, de todo modo, o presidente não parece muito disposto a apertar a líder do MP, enfatizando em um pronunciamento na sexta (13) que não tem poder para removê-la diretamente, sem dar muita atenção aos pedidos para que, pelo menos, faça alguma pressão nesse sentido. Enquanto representante máxima do Ministério Público, uma eventual investigação contra Porras passaria necessariamente pelo aval da Corte Suprema e do Congresso – onde Arévalo não terá vida fácil – para depois voltar às mãos do próprio MP, facilitando articulações políticas e institucionais para blindá-la.

Para uma população cansada do “pacto de corruptos”, a saída que resta é bater no nome da chefe ministerial à espera de uma atitude milagrosa. Mas, num país onde o status quo sempre vence, não seria surpreendente se a história de Bernardo Arévalo acabasse como a do pai.

CAPA: Sob comando do presidente Alejandro Giammattei, polícia guatemalteca reprimiu grandes protestos nos últimos dias. Foto: Presidência da Guatemala

#GUATEMALA
INTERNACIONAL
AMÉRICA LATINA
POLÍTICA
DIREITOS HUMANOS
BERNARDO ARÉVALO
ALEJANDRO GIAMMATTEI
CONSUELO PORRAS
PROTESTOS