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Sem presidente, Haiti cria ‘conselho’ em busca de eleições

O país não vai às urnas desde 2016 e já não tem mais representantes eleitos. Enquanto isso, novo grupo é criado com missão de organizar votação ainda este ano.

Giro Latino
#Haiti11 de fev. de 237 min de leitura
Mirlande Manigat, do Alto Conselho de Transição. Foto: Divulgação / Ariel Henry
Giro Latino11 de fev. de 237 min de leitura

Publicado originalmente na edição de 11/02/2023

O primeiro-ministro haitiano Ariel Henry nomeou, na segunda-feira (6), os integrantes do chamado Alto Conselho de Transição (HCT, na sigla em francês) com a missão de tentar viabilizar a realização de eleições no país ainda em 2023 – promessa que Henry repete desde que tomou posse após o assassinato do presidente Jovenel Moïse em julho de 2021. Um processo eleitoral não ocorre desde 2016 na combalida nação caribenha. Apesar da instalação do HCT, porém, observadores apontam ser improvável que o grupo, composto por apenas três membros, consiga promover alguma mudança concreta no curto prazo de que dispõe: até 7 de fevereiro de 2024, dia que o premiê prometeu entregar o cargo, implicando na realização de eleições e na posse dos escolhidos em um intervalo de apenas 366 dias a contar do início dos trabalhos do Conselho.

O HCT foi saudado por Henry como “o início do fim da disfunção de nossas instituições democráticas”, embora ele próprio tenha deixado margem, nas entrelinhas, para uma eventual prorrogação dos trabalhos, afirmando que “a complexidade da situação não favorece a realização de eleições imediatas” e que “não seria aceitável para o Estado pedir que os políticos façam campanha se não conseguirmos garantir sua segurança”. Os integrantes do Conselho representam simbolicamente três setores do Haiti: o político (com a advogada Mirlande Manigat, presidenciável em 2010 e ex-primeira dama de um presidente meteórico eleito e derrubado em 1988), empresarial (com Laurent Saint-Cyr, presidente da Câmara de Comércio do país) e civil (com o pastor Calixte Fleuridor, da Federação Protestante). Juntos, eles carregam a expectativa de trabalhar com o atual governo para reformar a Constituição, consolidar o sistema Judiciário de modo a reduzir a violência, implementar reformas econômicas e, principalmente, organizar uma comissão eleitoral provisória capaz de promover as tais eleições ainda em 2023 ou nos primeiros dias de 2024.

Uma missão que muitos veem, no entanto, como grande demais para um grupo que já foi excluído da primeira visita de primeiro escalão recebida pelo país após sua instalação: na quarta-feira (8), o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Türk, iniciou uma viagem de dois dias ao Haiti e não cumpriu agenda com o HCT. O timing da nomeação do conselho de transição “oficial” também incomodou a oposição – foi apenas uma semana após a renúncia do ex-senador Steven Benoît como “primeiro-ministro paralelo” em outro conselho de transição, este nomeado pelo chamado Acordo de Montana, que nunca conseguiu realizar qualquer avanço prático. O Montana, cujo nome deve-se ao hotel de Porto Príncipe onde as reuniões de fundação foram realizadas, é um grupo formado por setores contrários a Ariel Henry em busca de uma saída para a crise. Para críticos, a nomeação do HCT logo após a mais nova baixa no Montana seria um ato oportunista para esvaziar de vez o único coletivo de oposição que conseguiu algum impacto, ainda que pequeno, desde a morte de Moïse – este o estopim do vazio de poder atual.

O Haiti começou 2023 sem qualquer representante eleito

Sem um governo plenamente funcional há três anos, quando o Legislativo deixou de operar após o fim do mandato da imensa maioria de seus integrantes (todos os deputados e dois terços dos senadores), o Haiti começou 2023 com a marca simbólica de ter ficado sem qualquer representante eleito. O marco obscuro veio, em janeiro, após o término do mandato dos últimos 10 senadores remanescentes, que cumpriram o restante de seu período legislativo mesmo sem quórum para votar nada desde 2020. A atual crise institucional nasce de conflitos ainda anteriores, que levaram a sucessivos cancelamentos de eleições: os protestos contra a alta dos combustíveis em 2018, após o estouro do escândalo Petrocaribe e o fim da venda de petróleo subsidiado por parte da Venezuela. Na época, os protestos de cunho econômico também se converteram quase imediatamente em uma nova leva de questionamentos à legitimidade do então presidente Jovenel Moïse, que havia assumido no ano anterior após a realização de eleições repetidas: em um primeiro pleito, em 2015, ele havia passado ao segundo turno sob acusações de fraude, e o processo foi anulado.

O contestado governo Moïse acabaria avançando praticamente sem qualquer dia de paz. A continuidade dos protestos impediu a realização de eleições legislativas em 2019 e, com o fim dos mandatos na virada daquele ano, o presidente virou um autocrata, governando por decreto. Depois, sempre com manifestações constantes exigindo sua renúncia, Moïse tentou impulsionar uma reforma constitucional (que nunca foi adiante, mas segue em pauta), enquanto enfrentava tentativas de destituição que alegavam que seu mandato já havia sido concluído (e que ele qualificou de “golpe”). Por fim, num desfecho digno do tamanho da crise, acabou assassinado em julho de 2021. Sempre com margem para novos problemas, os dias após o magnicídio viram por si só um cabo de guerra pela herança do poder, que recairia sobre o primeiro-ministro de Moïse – convenientemente, Ariel Henry havia sido nomeado para o cargo na antevéspera do crime, e acabou assumindo com apoio internacional. Desde então, várias linhas de investigação apontam que o próprio Henry poderia estar envolvido na morte do presidente, mas foram invariavelmente obstruídas por omissão ou interferência ativa do atual premiê.

É nesse caldo de crises sucessivas, iniciadas quando o país mal se recuperava do terremoto que deixou mais de 200 mil mortos em 2010 e sequer via o final da última intervenção estrangeira em seu território, a catastrófica Minustah, que chega o comitê de transição nesta semana. Ariel Henry ainda aguarda a resposta da comunidade internacional aos seus pedidos por uma nova missão militar capitaneada por potências estrangeiras enquanto segue sem encontrar solução para o colapso geral de um país que vive novo surto de cólera e vê vastas áreas já fora do controle do Estado, dominadas pela violência de gangues armadas – algumas delas inclusive rejeitando a pecha de organizações criminosas e divulgando pretensões abertamente revolucionárias. Na sexta (10), Volker Türk concluiu sua passagem pelo país e quebrou o silêncio, endossando os pedidos do premiê: “é hora da comunidade internacional ajudar as autoridades haitianas a retomar o controle para acabar com esse sofrimento”, disse o comissário da ONU. Há algumas semanas, a mesma entidade havia reiterado a necessidade de elevar a resposta à crise haitiana a uma fase armada. Também na sexta, a Organização dos Estados Americanos (OEA) passou uma resolução endossando seu apoio ao processo transicional e também sinalizando o 7 de fevereiro de 2024 como data-alvo para uma conclusão.

Correndo contra o tempo e com a atribuição de reconstruir boa parte da vida institucional haitiana praticamente do zero, o novo conselho de transição abre seus trabalhos sem que ninguém (talvez nem o próprio Henry) aposte em seu sucesso sem auxílio externo. Tudo enquanto crescem as expectativas e as tensões em torno de uma nova intervenção internacional para viabilizar a agenda em tão pouco tempo. Um desfecho que tampouco coloca o Haiti numa rota de paz, já que as memórias sombrias da Minustah deixam um enorme ponto de interrogação sobre as possíveis consequências a longo prazo nesse quebra-cabeça de crises sem fim.

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Ariel Henry
Alto Conselho de Transição