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Haiti: Quênia oferece ‘ajuda humanitária’ com polícia implicada em chacinas

GIRO LATINO

Governo queniano anunciou envio de mil policiais ao país caribenho para “restabelecer a normalidade”; Jamaica e Bahamas devem entrar na força-tarefa

5 de ago. de 235 min de leitura
5 de ago. de 235 min de leitura

O longo impasse em torno de uma intervenção estrangeira para ajudar o Haiti a lidar com sua crise humanitária pode estar perto do fim, capitaneado por uma nação inesperada: no último final de semana, o Quênia manifestou oficialmente sua disposição a “considerar positivamente” assumir o comando de uma força-tarefa internacional no atribulado país caribenho. Em um momento inicial, o governo queniano indicou a possibilidade de enviar um efetivo de mil policiais (e não o Exército, como costuma acontecer nesses casos) para auxiliar no combate às gangues armadas que vêm dominando amplas áreas do Haiti, especialmente na capital Porto Príncipe. Os agentes de segurança africanos teriam a missão de treinar a própria Polícia Nacional Haitiana, “restabelecer a normalidade” e proteger instalações estratégicas, hoje à mercê de grupos criminosos.

A abertura de Nairóbi a abraçar a ingrata missão foi imediatamente saudada pela ONU, que há meses tentava sem sucesso encontrar algum governo interessado no assunto, e por países como os Estados Unidos, que (a exemplo da Europa) vinham tirando o corpo fora quando instados a empregar seus recursos financeiros e militares para encabeçar um projeto desse tipo. Além do Quênia, nações próximas ao Haiti, como Bahamas e Jamaica, anunciaram que também colaborariam com efetivos nas forças de segurança – decisão apoiada pela Comunidade do Caribe. Mas, após alguns dias do entusiasmo inicial, a capacidade dos policiais quenianos de realmente trazer algum vestígio de “normalidade” começou a ser questionada por organizações de direitos humanos e observatórios internacionais – isso porque, além de não falar francês ou créole, as duas línguas oficiais faladas pelos haitianos, a força de segurança do país africano praticamente não tem experiência atuando fora de suas fronteiras; para piorar, também convivem com pesadas denúncias de praticar violência sistemática contra seus próprios cidadãos.

Em 2020, por exemplo, oficiais da polícia queniana se tornaram infames por empregar força letal contra a população civil, de modo a garantir que as regras de isolamento e quarentena fossem cumpridas no início da pandemia de covid-19. Muito mais recentemente, em julho deste ano, os agentes do país africano voltaram a causar escândalo pela brutal repressão a uma série de protestos contra o aumento de impostos e do custo de vida: grupos independentes estimam a morte de pelo menos 35 pessoas nas manifestações do mês passado – com exceção de uma vítima, que sufocou com gás lacrimogêneo, todas as outras teriam sido baleadas pelas autoridades. Outra razão de preocupação vem da postura da própria ONU, que enfatizou que o trabalho dos policiais não se enquadraria como uma missão de paz tradicional: na prática, os quenianos estariam no controle das ações que conduzirem no Haiti, sem a necessidade de prestar contas às Nações Unidas.

O Ministério de Relações Exteriores e Diáspora do Quênia, ao fazer o anúncio no sábado passado (29/7), não divulgou quais seriam as contrapartidas acordadas com as potências estrangeiras em troca dessa súbita (e bem-recebida) disposição em ajudar. Preferindo um discurso rodeado de simbologia, o chanceler Alfred Mutua garantiu: “o Quênia está ao lado dos descendentes de africanos de todo o mundo, incluindo aqueles no Caribe, e se alinha com a política da União Africana para a diáspora, e com o nosso próprio compromisso com o Pan-Africanismo”. Na sexta-feira (4), os EUA reiteraram sua disposição de apoiar uma missão liderada pelo Quênia, mas condicionaram a dimensão de seu envolvimento a uma “análise” que o país africano ainda fará da situação que vai encontrar no Caribe.

Oficiais haitianos integrantes da MINUSTAH, missão da ONU no Haiti, em 2015. Foto: Logan Abassi / ONU
Oficiais haitianos integrantes da Minustah, missão de paz da ONU no Haiti, em 2015. Foto: Logan Abassi / ONU

Intervenções da ONU no Haiti são uma memória recente e infeliz para o país: a última, a Minustah (2004-2017), liderada em quase toda a sua duração pelo Brasil, deixou para trás um sem-fim de acusações de violações de direitos humanos e até doenças em um país que – como se vê hoje – passou longe de ser estabilizado. Para os próprios brasileiros, o legado do protagonismo concedido às suas Forças Armadas foi uma geração de militares com sede de participação na política interna ao voltar para casa, inclusive com forte viés golpista aliado ao projeto de governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). 

Apesar das recordações sombrias, o apelo por uma nova missão internacional partiu de Porto Príncipe: em outubro do ano passado, o premiê haitiano Ariel Henry reconheceu a incapacidade de seu governo de lidar sozinho com a crise, pedindo ajuda externa. Passados nove meses, a disfuncionalidade do Estado haitiano seguiu em frente, bem como os números galopantes de violência, fome e o domínio de gangues sobre os mais diversos aspectos da vida cotidiana: nesta semana, o caso que ganhou as manchetes foi o sequestro de uma enfermeira estadunidense em missão humanitária e sua filha, cujo paradeiro seguia desconhecido até o fechamento desta edição; só neste ano, grupos criminosos já promoveram mais de 500 crimes desse tipo no país, com objetivo de cobrar resgate dos familiares. Desde o apelo de Henry, a ONU viveu uma saga em busca de alguém disposto a se envolver no assunto, uma dor de cabeça que o Quênia agora parece querer resolver – mas a que custo, para ele próprio e para o Haiti, ainda é uma incógnita.  

CAPA: Forças da polícia haitiana enviadas para colaborar com o processo eleitoral em 2017, com parte da missão da ONU no país. Foto: Logan Abassi / ONU

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