Conecte-se

#VENEZUELA

Essequibo: referendo quer 70% da Guiana para Venezuela

GIRO LATINO

Em disputa desde o séc. 19, área ocidental da Guiana ganhou destaque após a descoberta recente de ricas reservas de petróleo; Caracas alega “direito histórico” e critica interesses internacionais

2 de dez. de 237 min de leitura
2 de dez. de 237 min de leitura

“Um assunto de unidade nacional” foi como a vice-presidenta da Venezuela, Delcy Rodríguez, definiu na terça (28), durante um ato solene, o posicionamento histórico de seu país a respeito de Essequibo. O território pertencente à vizinha Guiana será reivindicado pelos venezuelanos por meio de um referendo nacional neste domingo (3). De caráter não vinculante, o processo consultivo contemplará cinco perguntas a respeito do tema: os mais de 20 milhões de eleitores habilitados poderão responder – com “sim” ou “não” – às questões sobre as antigas arbitragens que regem o direito à área, sobre o papel da Justiça Internacional no caso e até mesmo sobre a criação de um novo estado da República Bolivariana da Venezuela dentro dos limites da zona em disputa desde o século 19. 

Feitas em harmonia com a reivindicação de Caracas, que defende seu “direito histórico” sobre Essequibo, as perguntas contam com um nada surpreendente lobby chavista pelo “sim”. Sem perder tempo, o governo iniciou em novembro uma enérgica campanha para congregar eleitores ao redor de um tema que “não envolve ser de um partido ou de outro”, como disse o presidente Nicolás Maduro, completando que “não podemos deixar que ninguém nos divida nesta grande causa nacional que busca recuperar terras deixadas por nossos libertadores”. Defendendo a importância do tema, o governo até realizou uma simulação eleitoral duas semanas antes da data oficial – com direito a comparecimento recorde e resultados “exitosos”, segundo autoridades eleitorais. 

Se do lado venezuelano há otimismo e apelo patriótico – ainda que apenas para eventualmente ratificar um consenso nacional a respeito de um assunto de resolução bem mais complexa – do lado guianês sobra repúdio. Classificando a votação do final de semana de “ameaça existencial” à sua soberania e acusando a medida de ser um “gatilho” usado por Caracas para “tomar o território por força militar”, a Guiana pede à Corte Internacional de Justiça (CIJ) que as tentativas de “anexação” cessem imediatamente. Não é por menos: com cerca de 160 mil quilômetros quadrados, Essequibo corresponde a cerca de 70% do território guianês. “Cada centímetro quadrado é nosso”, disse, em novembro, o presidente Irfaan Ali. 

Vale recapitular: a Guiana se ampara em um laudo arbitral assinado em Paris em 1899 e que, de forma controversa segundo os venezuelanos, determinou que o controle sobre o território em questão seria da Grã-Bretanha, que na época controlava a então chamada “Guiana Britânica” como uma de suas colônias. Já o lado latino-americano defende que o tema seja regido pelo Acordo de Genebra – assinada em 1966, mesmo ano em que a Guiana se tornou independente, a tratativa reconhece a demanda da Venezuela sobre Essequibo. Segundo esse documento posterior, que também é tema de uma das perguntas do referendo de domingo, caso os dois países falhem em achar uma resolução pacífica, “deverão encaminhar a decisão (...) a órgãos internacionais competentes”. 

Área de Essequibo reivindicada pela Venezuela. Gráfico: Governo da Venezuela
Área de Essequibo reivindicada pela Venezuela. Gráfico: Governo da Venezuela

Até o início do século 19, quando os venezuelanos recém começavam a se emancipar de sua própria dominação colonial, a zona de Essequibo passou cerca de 200 anos em mãos neerlandesas, que resistiram a incursões espanholas – e dos próprios britânicos – antes de ceder as terras ao Reino Unido em 1814, cinco anos antes da independência da Grã-Colômbia (que depois se fracionou em diferentes países, inclusive a própria Venezuela… e o que viria a ser a Guiana).

Diante do impasse e de diferentes interpretações, o caso foi levado à CIJ em 2018 e se arrastou desde então. Na terça (28), a Corte disse que daria um parecer até o final da semana a respeito de um pedido da Guiana sobre “medidas provisórias” para impedir a realização do referendo – na sexta, por fim, foi emitido um chamado para que a Venezuela se abstenha de tomar ações que modifiquem a situação atual do território. No entanto, considerando que o referendo não tem caráter vinculante e não teria poder para, sozinho, alterar o status de Essequibo ou validar uma incursão militar, as medidas da CIJ não devem alterar os planos do fim de semana.

Há, ainda, um pano de fundo econômico: ainda que centenária, a disputa entre as duas nações ganhou mais destaque nos últimos anos após a descoberta, por volta de 2015, de enormes e riquíssimas reservas de petróleo na costa guianesa, que se estende majoritariamente por Essequibo. Não é uma situação inédita: nos anos 1870, um primeiro agravamento das relações bilaterais entre Caracas e Londres em torno da região aconteceu após a descoberta de minas de ouro no lugar. Voltando ao século 21, com um setor petrolífero discreto em termos legais e estruturais até então, o pequeno país viu poucas opções senão conferir concessões à gigante ExxonMobil, dos EUA, que desde então explora a área. As cifras chamam atenção: segundo a companhia, as reservas em Essequibo têm capacidade para produzir até 11 bilhões de barris, podendo chegar à conta diária de 1,2 milhão de barris em 2027. A benesse fez a economia do país decolar num ritmo sem precedentes: em 2022, por exemplo, o PIB da Guiana cresceu mais de 63%, segundo dados do Banco Mundial – foi a maior variação do planeta.

O presidente venezuelano Nicolás Maduro diz que o governo guianês tem convertido o país “em uma filial da ExxonMobil”, em referência à exploração de petróleo por empresas estrangeiras. Foto: Presidência da Venezuela
O presidente venezuelano Nicolás Maduro diz que o governo guianês tem convertido o país “em uma filial da ExxonMobil”, em referência à exploração de petróleo por empresas estrangeiras. Foto: Presidência da Venezuela via Flickr

Enquanto o dinheiro jorra do lado guianês, Maduro segue tecendo duras críticas à exploração. Em setembro, o mandatário defendeu o Acordo de Genebra como “o único meio de resolução” para o caso, acusando seu homólogo vizinho de “propagar mentiras” e de fazer “falsa vitimização”. Segundo ele, Ali transforma a Guiana “em uma filial da ExxonMobil” ao “agradar aos poderosos interesses transnacionais”. Em meio à troca de farpas do chefes de Estado, críticos do chavista alegam que Caracas tem interesses nas reservas encontradas em Essequibo porque sua própria produção de petróleo, outrora pujante, sofreu um declínio vertiginoso na última década. A situação venezuelana é uma combinação de sanções internacionais ao setor, oscilações do mercado, sucateamento da estrutura e até corrupção dentro da estatal de petróleo PDVSA. 

O tema também parece caro ao governo em função de seu impacto político – a Venezuela, vale lembrar, vai às urnas para eleger presidente em 2024 (a data certa segue indefinida), com pressões internacionais cada vez maiores para que candidatos de oposição não sejam barrados do pleito. 

Outros países também olham o tema com atenção pelos riscos de uma escalada militar. Sempre metidos em assuntos internacionais, ainda mais quando há petróleo envolvido, os EUA devem enviar altos oficiais da Defesa à Guiana nos próximos dias, enquanto autoridades locais já falam em “manter a paz”, mas “considerando todas as opções de defesa” em caso de conflito. A embaixada do país em Georgetown também comunicou o “fortalecimento de relações militares”. O Brasil, que sob Lula tem tentado retomar um papel de integração na região, também enviou a Caracas na última quarta-feira (22) o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, hoje assessor especial, para encontros emergenciais com Maduro. O Exército Brasileiro também reforçou o contingente na região de fronteira com os dois países. 

Mesmo sem o poder de redesenhar as linhas de fronteira de Essequibo, o referendo deste início de dezembro pode marcar uma nova etapa nesse arrastado impasse geopolítico e econômico. Tudo enquanto o mundo vê o assunto cada vez mais de perto.

CAPA: Trilha no meio da vegetação nativa da Sloth Island, na região de Essequibo, na Guiana. Foto: Dan Lundberg via Flickr

#VENEZUELA
AMÉRICA LATINA
INTERNACIONAL
GUIANA
ESSEQUIBO
PETRÓLEO
MEIO AMBIENTE
GEOPOLÍTICA