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Equador: esquerda correísta tenta colher frutos da ‘morte cruzada’

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Grupo ligado a ex-presidente Rafael Correa tenta se aproveitar do ‘kamikaze político’ de Guillermo Lasso enquanto critica a medida

19 de mai. de 237 min de leitura
19 de mai. de 237 min de leitura

Não tem mais volta: a Corte Constitucional (CC) do Equador determinou, na quinta-feira (18), que o decreto de “morte cruzada” acionado um dia antes pelo presidente Guillermo Lasso estava de acordo com as normas legais do país, enterrando seis pedidos de reversão feitos por setores da oposição. O entendimento da CC é que não cabe a ela opinar sobre o decreto quando a alegação presidencial é de “grave crise política e comoção interna”, o que reforça a tese de que outros mandatários poderão invocar a morte cruzada no futuro sem prestar contas a ninguém. Na prática, estão mantidos os termos de quando Lasso tomou a medida radical na véspera: a Assembleia Nacional está dissolvida, seus integrantes inabilitados, o presidente terá a prerrogativa de governar por decreto pelos próximos meses, e eleições extraordinárias tanto para o Legislativo quanto para a própria Presidência deverão ser realizadas no segundo semestre deste ano – quando a população escolherá novos nomes (ou velhos, já que não há entraves à reinstalação dos mesmos representantes retirados) para mandatos-tampão até maio de 2025.

Apesar de muitos partidos contrários a Lasso terem erguido a voz e até procurado a CC para reverter a morte cruzada, houve um movimento que se destacou por sua reação ambígua: a União pela Esperança (UNES), coalizão de esquerda vinculada ao ex-presidente Rafael Correa (2007-2017), que adotou um tom de “é proibido, mas, se quiser, pode”. Tanto Correa quanto nomes destacados da UNES foram pelo mesmo caminho: repetiram que a dissolução decretada pelo presidente seria “ilegal”, mas também encararam a situação como uma chance para aumentar sua representação no Congresso – e até, quiçá, pleitear o Executivo – nas eleições fora de hora que virão. “É a grande oportunidade para nos livrarmos de Lasso, de seu governo e de seus congressistas de aluguel, e recuperar a pátria”, afirmou Correa diretamente da Bélgica, onde vive na condição de asilado político.

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Não é todo dia que se vê a oposição que acaba de ser removida à força de seus cargos celebrar esse desfecho, mas em alguns casos o posicionamento de políticos ligados ao correísmo chegou a ser bem mais efusivo. “É uma vitória da Revolução Cidadã”, afirmou a recém-inabilitada parlamentar Marcela Holguín, horas depois da destituição, utilizando o sugestivo nome oficial do movimento que hoje prefere se apresentar como UNES. Para ela, a medida extrema de Lasso demonstrou o isolamento do presidente, indicando que a oposição já teria arrebanhado os votos necessários para removê-lo do cargo – a votação nunca aconteceu, mas pouco antes do decreto derradeiro, o jornal El Universo informou que faltavam apenas dois votos para chegar aos 92 necessários para derrubar o mandatário.

Os grupos que realmente se mobilizaram contra a morte cruzada não foram os correístas, mas o Partido Social Cristão (PSC) e o Pachakutik, sigla ligada à Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), embora essa relação ande estremecida nos últimos dias. O PSC, aliado de ocasião da UNES no impeachment, passou todo o processo buscando reiterar que não era uma sigla de esquerda, e após o decreto de Lasso se apressou a recorrer à alta corte tentando reverter a decisão. O partido foi, inclusive, o que adotou o tom mais duro em suas manifestações: em um documento assinado por suas lideranças, o PSC afirmou que “no político e na prática, o presidente se declarou ditador, ainda que seja por um tempo curto”. Agora, a sigla já se posiciona publicamente com o lema “nem Lasso, nem Correa”.

Representantes indígenas no Encontro Parlamentar pela União Latino-americana e Caribenha em 2016, no Congresso do Equador. Foto: Alberto Romo / Assembleia Nacional do Equador
Representantes indígenas no Encontro Parlamentar pela União Latino-americana e Caribenha em 2016, no Congresso do Equador. Foto: Alberto Romo / Assembleia Nacional do Equador

No caso do Pachakutik, o desconforto tem a ver com a perda do espaço inédito que os indígenas haviam conquistado nas eleições de 2021. Na ocasião, o partido que jamais tinha emplacado mais que nove eleitos conseguiu, de uma só vez, eleger 27 representantes. Com a dissolução do Congresso, isso se perdeu – e as leituras políticas do momento consideram improvável que os povos originários repitam, na eleição-tampão, o desempenho de dois anos atrás. Enquanto isso, em um pronunciamento poucas horas após o desenlace da nova crise, a Conaie se declarou “em vigília permanente pelo povo equatoriano” e fez duras críticas a Lasso. “[Ele é responsável pelo] maior desastre social, econômico e político da história do país”, disse Leónidas Iza, presidente da Conaie. Por enquanto, a entidade não convocou a população às ruas, fator capaz de abalar duramente os governos equatorianos. Quem também seguirá em alerta são os sindicatos, que prometem greves caso avance um decreto de reforma trabalhista. A UNES, por sua vez, prefere assistir às mobilizações de longe: já indicou que não pretende convocar protestos, mas “respeita” quem quiser fazê-lo. 

E aqui vale outra diferenciação: embora ambos tenham feito marcada oposição a Lasso, os indígenas e os correístas não estão necessariamente lado a lado. A Conaie enxerga Rafael Correa com desconfiança por ter aberto caminho a uma série de projetos de exploração de recursos em terras indígenas, frequentemente ignorando suas demandas – e também recorda que foi Correa o padrinho político de Lenín Moreno (2017-2021), cujo governo atropelou repetidas vezes os direitos dos povos originários (Moreno acabou virando persona non grata entre todos, já que acabou traindo o próprio ex-mandatário que o ajudou a chegar lá). Do lado da UNES, há também antipatia com a Conaie, que é acusada de ter ajudado Lasso a chegar ao poder após indicar voto nulo no segundo turno das eleições presidenciais de 2021 – um recorde de 1,7 milhão de pessoas não escolheu candidato algum (mais de 1 milhão a mais que em 2017), em um pleito decidido por margem de 420 mil votos.

Agora, a contagem regressiva das eleições extraordinárias já está correndo: falta confirmação oficial, mas as autoridades eleitorais já indicaram que trabalham com a previsão de votação em 20/8 e um eventual segundo turno em 15/10. De maneira curiosa, poderá ser uma batalha pelo poder sem envolvimento direto dos dois protagonistas do momento: Rafael Correa segue fora do Equador, asilado na Europa para escapar ao que considera uma perseguição política através da Justiça (ele foi condenado a oito anos de prisão por corrupção); já Guillermo Lasso indicou, em entrevista exclusiva ao Washington Post publicada nesta sexta (19), que não pretende concorrer para seguir no cargo e “não se importa” com quem venha depois dele. 

Para o presidente, a prioridade nos meses em que vai governar por decreto é tentar conter a crise de segurança pública: o Equador é o país sul-americano com a piora mais acentuada dos índices nos últimos anos, em meio a conflitos entre grupos do narcotráfico. Uma crise que não dá trégua nem diante dos impasses políticos do país, embora também respingue neles: nesta mesma semana, dois dias antes da morte cruzada, um prefeito recém-empossado na região metropolitana de Guayaquil sobreviveu a um ataque – que deixou uma vítima – contra o carro em que se dirigia para o primeiro dia no cargo. Há muitas dúvidas quanto ao que vem por aí no Equador, mas uma certeza: quem vencer terá mais problemas a resolver do que razões para comemorar.

Capa: Bancada da Revolução Cidadã dá coletiva de imprensa em 4 de julho de 2019. Foto: Fernando Sandoval / Assembleia Nacional do Equador

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