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Chile: 50 anos do golpe reforçam fraturas do presente

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Gabriel Boric anuncia novo plano para buscar desaparecidos políticos, mas não consegue unir partidos em declaração conjunta condenando o golpe de 11 de setembro de 1973

2 de set. de 237 min de leitura
2 de set. de 237 min de leitura

“Morreu como um homem digno, orgulhoso da vida que havia vivido. Há outros que morrem de maneira covarde para não enfrentar a Justiça. Aí há diferenças humanas”. A declaração do presidente chileno Gabriel Boric, na quarta (30), causou indignação na direita e se tornou um resumo do clima político do país na antessala do 50º aniversário do golpe de 1973, que será recordado no próximo 11/9: Boric estava no velório de Guillermo Teillier, ex-presidente do Partido Comunista do país, e aproveitou o momento para lançar uma indireta ao general aposentado Hernán Chacón Soto. Na véspera, Chacón, que havia sido condenado a 15 anos de prisão pelo assassinato do cantor e compositor Víctor Jara – um crime marcante cometido na sequência do golpe de meio século atrás – acabou tirando a própria vida quando a polícia chegava à porta de sua casa para levá-lo à cadeia.

Aos 86 anos, Chacón foi um de sete ex-militares que, na segunda (28), tiveram a condenação confirmada pelo Supremo chileno por seu envolvimento no sequestro e brutal execução de Jara, com penas entre oito e 25 anos de reclusão. Sendo o músico ele próprio um comunista filiado ao Partido e considerado um “embaixador cultural” do governo de Salvador Allende, Jara se tornou alvo prioritário da nascente ditadura pinochetista, caiu preso no dia seguinte ao golpe e acabaria assassinado antes que o regime completasse sua primeira semana. A decisão do Supremo, que analisava um recurso dos condenados, também ditou sentença pelo sequestro e morte de Littré Quiroga Carvajal, ex-diretor penitenciário durante o governo Allende, cujo corpo foi “desovado” pelos militares ao lado do de Víctor Jara em um povoamento dos arrabaldes de Santiago, pouco depois das execuções.

A morte 'covarde' de Chacón para escapar da cadeia não chegou a gerar grande comoção, mas a indireta de Boric não passou despercebida.

A morte “covarde” de Chacón para escapar da cadeia não chegou a gerar grande comoção, mas a indireta de Boric não passou despercebida. Deputados da bancada da União Democrata Independente (UDI), partido de direita que esteve ao lado dos governos de Sebastián Piñera – as únicas gestões conservadoras do Chile após o fim da ditadura, em 1990 –, foram rápidos em pedir retratação do atual presidente, a quem acusaram de chegar ao “mais baixo nível”. O pano de fundo das críticas da UDI, porém, vai além das condenações a duas semanas do cinquentenário do golpe: é reflexo da dificuldade de Boric – cujos índices de aprovação seguem baixos, na casa de 28% – em conseguir reunir todas as correntes políticas do Chile em uma condenação conjunta dos episódios de 1973.

De olho na efeméride de 11/9, o presidente fala desde julho sobre a assinatura de um documento que contaria com a firma de todos os partidos condenando o golpe de 50 anos atrás. Após vários questionamentos da oposição sobre o possível conteúdo da carta, mais recentemente La Moneda parece ter se dobrado e começou a mencionar, de forma genérica, um “compromisso pela democracia” que unisse todas as correntes ideológicas. Nunca é demais recordar que o aniversário redondo do levante militar vai coincidir com o momento de maior proeminência da ultradireita chilena desde o final da própria ditadura: em maio, a eleição de um novo Conselho Constitucional (no interminável processo para tentar refazer a Carta Magna do Chile, que pode até fracassar outra vez) entregou a maior representação do órgão ao Partido Republicano de José Antonio Kast – o presidenciável acabou derrotado por Boric nas eleições em 2021, mas viu seu movimento radical, mais adiante, colher os frutos da gestão acidentada do jovem esquerdista. 

Memorial 'Três Cadeiras' em homenagem a Manuel Guerrero, Santiago Nattino e José Manuel Parada, mortos em 1985 pela ditadura militar. Foto: Governo do Chile
Memorial 'Três Cadeiras' em homenagem a Manuel Guerrero, Santiago Nattino e José Manuel Parada, mortos em 1985 pela ditadura chilena. Foto: Governo do Chile via Flickr

A ascensão da direita no repuxo dos movimentos sociais de 2019, que por algum tempo chegaram a sonhar em sepultar a Constituição herdada de Pinochet, também deu mais força a disputas sobre a memória e o significado do 11/9 chileno.

No último dia 22/8, por exemplo, a direita celebrou sua própria visão do cinquentenário, com a Câmara de Deputados fazendo a leitura de um documento histórico firmado em 1973, naquela mesma data, por legisladores da oposição (que era, como agora, majoritária). O texto, que acusava o governo Allende de estar violando a Constituição, é considerado a “luz verde” da classe política chilena a um golpe militar – que viria apenas 20 dias depois – e seria rotineiramente usado por Augusto Pinochet como justificativa para suas ações. Com o tempo, tornou-se um documento maldito por ter justamente aberto caminho para o fechamento de todos os partidos do país, inclusive aqueles que o apoiaram na época – a Democracia Cristã, grande força opositora que encabeçou a declaração de agosto de 1973, depois integraria a maior parte dos governos de centro-esquerda na redemocratização, e em 2023 foi voto vencido contra a releitura do polêmico texto, em um sinal da mudança de forças e da radicalização à direita na política atual.

Mesmo com sua capacidade de ação muito mais limitada do que gostaria, o governo ainda vem tentando utilizar o simbolismo da data para fazer movimentos há muito aguardados por defensores de direitos humanos. Na mesma quarta (30) em que deu a declaração inflamada sobre Chacón, Gabriel Boric também anunciou a criação de um novo Plano de Busca para mobilizar os diferentes órgãos do Estado na tentativa de localizar os desaparecidos políticos da ditadura – ainda há mais de mil pessoas cujos restos mortais não foram identificados ou sequer encontrados.

Cinquenta anos depois, pode até parecer que há pouco por ser descoberto em um país que (com todos os seus problemas) muito tentou investigar o seu passado. Mas novos horrores vêm à tona todos os dias: nesta mesma semana, ganhou as manchetes a história de um homem que cresceu nos EUA e descobriu que, na verdade, era um bebê “roubado” de sua mãe no Chile durante a ditadura e entregue em adoção – um crime normalmente associado à ditadura argentina e pouco falado no outro lado dos Andes, onde só nos últimos anos o tema passou a ser discutido. Após 42 anos, o homem que cresceu como Jimmy Lippert-Thyden enfim encontrou sua mãe biológica, a chilena María Angélica González, no final de agosto. No hospital, em 1980, ela ouviu que o bebê havia morrido logo após o parto, e nunca pôde vê-lo. 

Jimmy é apenas um entre milhares. Hoje, estima-se que 20 mil bebês foram adotados por casais estrangeiros durante os anos de Pinochet – e que até um terço deles tenha seguido processos irregulares facilitados pela ditadura. E, com o governo tendo dificuldades para unir o país para condenar os horrores do passado, não é certo que o Chile vá seguir acertando todas essas contas pendentes no futuro. Ainda mais com a crescente perda de espaço das velhas e novas esquerdas.

CAPA: Exposição feita em 2017 sobre o centro de detenção no Estádio Nacional do Chile, em Santiago, após o golpe de 1973. Foto: Governo do Chile via Flickr

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